Só a sociedade que condena o aborto valoriza verdadeiramente o Direito à Vida. A frase parece um mero jargão, mas possui significado profundo. Em um primeiro momento parece querer dizer o que salta aos olhos de qualquer leitor, que, sendo o embrião uma pessoa humana viva, a autorização de sua morte sem nenhuma conseqüência para o agente que a perpetra evidencia que a sociedade em questão não valoriza a vida.
Há, porém, um outro significado bem maior. Qualquer civilização ou cultura humana minimamente organizada atribui sanção ao homicídio e isso seria uma evidência de que tais sociedades valorizam a vida humana. Na realidade, entretanto, não é exatamente isso o que acontece.
O mínimo que um ser humano ainda que incipientemente são entende e crê é que deve proteger sua vida. Em uma situação de perigo defende-se, luta, busca prosseguir vivo. A sociedade e sua ordem jurídica avalizam esse direito de proteção consagrando as excludentes de ilicitude da legítima defesa e do estado de necessidade.
Mais do que isso, desde que a civilização humana organizou o Estado, o cidadão exige que a proteção de sua vida seja garantida por ele. Daí vem as exigências referentes à segurança pública, tão reivindicadas pelo homem do nosso tempo, ainda que o Estado tenha tanta dificuldade em garanti-la. Daí vem também a sanção imposta ao homicídio. Faz parte da garantia à defesa da minha vida que eu exija que o Estado puna aquele que contra ela atentar. O tipo penal do homicídio está no Código Penal para defender minha vida. Opera isso garantindo que quem contra ela atentar seja penalizado.
No caso do homicídio, portanto, a sanção imposta ao homicídio não decorre somente nem principalmente da valoração que a sociedade ou o Estado dão à vida em si, mas é fruto da exigência do cidadão de que o Estado o defenda. É também defesa à vida em geral, mas é, antes, a defesa da minha vida, que eu, cidadão consciente e ativo, exigi ser defendida. Não decorre tanto da valorização da vida em si, mas da capacidade dos cidadãos adultos de exigir e fazer exigir a defesa de seus direitos, a começar pela vida. Se não houver a sanção eu mudo os parlamentares pelo voto, eu me manifesto, organizo passeatas e, mesmo, derrubo o governo para colocar outro que defenda o que eu quero.
A lógica é a mesma para a garantia de inúmeros direitos. Direito à integridade física, à liberdade sexual (1), a uma administração pública transparente, direitos do consumidor, do trabalhador, direito à propriedade, à herança… De certa forma, a ordem jurídica protege a todos esses direitos, mas não porque a sociedade em si os valoriza, mas porque os impõe como defesa dos cidadãos que formam à sociedade. Ainda os direitos do idoso são assegurados pensando-se nos pais dos cidadãos, por quem tanto prezam, e para os cidadãos mesmo, quando chegarem à idade avançada. Os direitos da infância e da juventude, para a defesa dos filhos do cidadão e, de maneira mais ampla, de toda a sociedade. Mesmo os regramentos referentes ao meio-ambiente existem para a defesa, em última instância, da sociedade e do homem.
Quando se defende o direito à vida do embrião, independentemente do desejo de sua mãe, ou de qualquer outra pessoa, é diferente. Está se defendendo o direito à vida dele pelo direito à vida em si e não pela sua capacidade de o exigir. Com efeito, o embrião não vota, não se manifesta publicamente, sequer fala. Quando a legislação defende apenas o embrião cuja mãe o quer defender, novamente está apenas atendendo às postulações de um adulto que tem força e capacidade de exigir. Quando ela defende a vida do embrião independentemente do que desejem a gestante ou qualquer outra pessoa, defende a vida como valor em si, não pela sua capacidade de exigência, ou manifestação, não pelo quanto pode incomodar, não pelo seu voto nem pelo seu grito. Sua vida é defendida porque esse ordenamento jurídico entende que toda a vida é importante, independentemente da força de quem a porta.
Aí temos um critério, inclusive, para avaliarmos a maturidade de uma dada sociedade. Se não exige do Estado que defenda sempre a vida, toda a vida humana, é porque ainda não descobriu inteiramente o valor intrínseco da vida. Pode e deve ter chegado a um ponto mínimo de maturidade em que a vida do adulto, do cidadão forte e de quem ele queira proteger segundo seus interesses, sejam defendidas. Isso, porém, não é valorização da vida, é busca de paz social, de comodidade. Não é humanismo (nem “feminismo” nem “masculismo”), é individualismo. Um primeiro passo, talvez sim, mas certamente não ainda a maturidade humana plena.
E quando se permite matar seres humanos embrionários por questões de conveniência, ainda que sob um discurso de “bem-estar social” e, lamentável, “direito à vida digna”, como se pobreza ou mesmo indigência pudessem retirar a dignidade da vida (ou seja, quem pensa assim coloca a dignidade não na vida em si, mas nas condições econômicas, sociais e culturais que eventualmente possua), ou como se fosse preferível morrer a viver sem certo patamar social ou coisa semelhante, aí se tem algo escancaradamente pior do que o individualismo, tem-se o egoísmo puro e simples, e em grau elevadíssimo. A vida vale menos do que conveniência.
A sociedade que condena o aborto valoriza a vida por acreditar em seu valor intrínseco, natural. Hoje vivemos em um ordenamento jurídico que minimamente ainda defende assim o direito à vida. Não podemos permitir que se involua, que se retroceda ao tempo em que só vale o meu direito, o meu interesse, a minha vontade, o direito meramente individual. Mantenhamo-nos valorizando o humano, todo o ser humano, a vida, toda a vida humana.
Defender o aborto é retroceder ao tempo em que apenas os fortes possuíam direito. Condená-lo é defender a vida, dos fortes e dos fracos, daqueles que sabem se defender e daqueles que não o sabem, dos que tem força para exigir e dos que não a tem.
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(1) No Título VI da Parte Especial do Código Penal brasileiro, estão elencados os Crimes contra a Liberdade Sexual, a saber, estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude
Manoel Luiz Prates Guimarães,
Fundador da Comunidade Paz & Mel
Promotor de Justiça
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