Uma testemunha conta como foi a resignação do Papa Bento XVI
Há dois anos, Bento XVI tornou-se o primeiro Papa a resignar, nos últimos 600 anos. Aqui está o relato comovente do Arcebispo Leo Cushley do que se passou nesse dia.
11 de Fevereiro é feriado no Vaticano. É o dia em que a Santa Sé celebra o acordo de 1929 da tão conhecida “Questão Romana”, a resolução dos 59 anos de disputa entre o Reino de Itália e a Santa Sé, depois da queda de Roma em 1870 para as tropas do Reinado e o fim efectivo dos antigos Estados Papais na Itália central. Por acaso, foi também o dia em que Bento XVI decidiu resignar há um ano atrás.
A data tinha sido marcada para um pequeno consistório, consistindo numa oração da hora intermédia e o anúncio do Cardeal Angelo Amato de alguns beatos que seriam promovidos a santos. Também já haviam uns suaves e pequenos rumores na Cúria Romana sobre o Santo Padre anunciar uma ou duas mudanças importantes na altura, talvez em relação ao topo da administração, mas este tipo de rumores circulam como gaivotas à volta do Belvedere do Vaticano: andam frequentemente por aí, fazem algum ruído e depois desaparecem outra vez. Por outras palavras, tal como na maior parte dos sítios, nada acontece até acontecer.
Não havia nenhuma indicação de que este dia iria ser diferente. Também era feriado e, apesar de o resto da Cúria estar a desfrutar de um descanso, as poucas pessoas à volta da pessoa do Santo Padre, incluindo eu próprio, estavam de serviço na Sala del Concistoro do Palácio Apostólico para o receber quando ele fosse rezar com os cardeais presentes em Roma e para estar na curta cerimónia.
Como Prelado da Antecâmara, uma espécie de auxiliar de campo, que ajuda os principais convidados do Santo Padre e que assegura que tudo corre de acordo com o previsto quando as pessoas importantes aparecem, cruzei-me com o Santo Padre antes de a cerimónia começar. Como sempre, ele desceu dos seus apartamentos por um elevador privado com o Arcebispo Georg Gänswein e o Msgr. Alfred Xuereb, os seus dois secretários. Parecia bem, mas cansado, e cumprimentou-nos de forma normal.
Como este era um dia de alguma solenidade, o Mestre de Cerimónias estava presente. O Arcebispo Guido Pozzo, na altura Esmoleiro, também lá estava. Quando o Santo Padre ficou pronto para a Liturgia das Horas, todos o seguimos para a Sala del Concistoro para rezar com os cardeais que lá estavam à espera.
Rezámos a hora intermédia da memória de Nossa Senhora de Lourdes (11 de Fevereiro) e depois o Cardeal Angelo Amato fez o seu anúncio relativamente aos que iam ser promovidos aos altares. Até aqui tudo bem.
O Santo Padre tomou então a sua vez de discursar. Era a primeira vez que eu me sentava num consistório, por isso não fazia ideia se isto era normal ou não. Ele falou em Latim, ia ser por isso necessário um esforço maior que o normal para todos nós – sendo o italiano a língua normal da Cúria – portanto era evidente uma certa tensão enquanto tentávamos perceber por onde é que ele estava a ir.
Dentro de segundos tornou-se claro o que se estava a passar. Este não era nenhum discurso normal. Não falou sobre o consistório e os quase-santos, de algumas mudanças na administração ou do aniversário dos tratados lateranenses ou do fim da disputa histórica com Itália. Em vez disso, ele fez história.
O meu estômago virou-se do avesso quando percebi que aqui diante de nós estava uma coisa que não se via há séculos: a resignação voluntária do Romano Pontífice.
Parecia que, em câmara lenta mesmo diante de mim, um cameraman assistente da televisão levou a sua mão à boca num gesto de espanto tipo desenho-animado, o monsenhor sentado ao meu lado começou a soluçar devagar, os ombros do Arcebispo Gänswein pareceram cair. Os cardeais inclinaram-se para a frente para ter a certeza de que tinham percebido exactamente o que estava a ser dito e eu apercebi-me que me estava a certificar se que a minha boca não estava totalmente aberta. Depois fez-se silêncio.
Após uma pausa, o decano do Colégio de Cardeais, o Cardeal Angelo Sodano, levantou-se e começou a falar. Não me lembro precisamente do que ele disse, mas foi breve, calmo e adequado. Estava claro que ele tinha sido informado antes e tinha preparado algumas palavras.
Pelo contrário, as caras dos cardeais mostravam que não tinham tido nenhum aviso do que se ia passar naquela manhã.
Depois do Cardeal Sodano saudar o Papa, nós seguimos o Santo Padre de volta ao hall. O coro tentou cantar uma espécie de canção de saída, mas tudo parecia fora de sítio agora. Eu olhei em volta para ver os cardeais a juntar-se num pequeno círculo, no sítio onde os tínhamos deixado. Olhavam uns para os outros num silêncio estupefacto.
O Papa tinha anunciado que ia largar o cargo daqui a cerca de três semanas, mas já parecia que era o fim. Nós seguimo-lo até ao elevador que sobe até ao apartamento privado. Normalmente, isto passa-se numa dignidade serena. As nossas comuns palavras de despedida – “Até amanhã, Santo Padre”, “Tenha um bom almoço, Santo Padre” ou “Boa festa!” – simplesmente não se materializaram, não me lembro de ser capaz de lhe dizer o que quer que seja. Apertámos a sua mão em silêncio ou dissemos algo inaudível. Enquanto lhe apertava a mão achei que ele parecia muito velho e muito pálido. E depois tinha-se ido embora. Virei-me para o leigo que liderava o grupo, apertei-lhe a mão e disse: “Ora, cosa facciamo?” (“O que é que fazemos agora?”). Ele não me deu resposta.
Desde aquele dia até 28 de Fevereiro, o último dia do pontificado, o calendário do Papa Bento simplesmente ganhou mais e mais velocidade. Parecia que todas as pessoas queriam vir e dizer-lhe adeus. Reuniões extra foram marcadas, mesmo nas noites, para que ele pudesse ver toda a gente que queria vir. Mas até isso parecia quase como que uma morte anunciada.
No penúltimo dia do pontificado, houve a última audiência geral do Papa na Praça de S. Pedro. Eis outra coisa que eu nunca tinha visto antes e uma das mais comoventes que alguma vez testemunhei. Em vez da multidão normal de peregrinos, turistas curiosos e visitantes, aqui estava toda a Roma Católica na praça, tinham vindo para se despedir do Papa. No meu trabalho desse dia, estava sentado por trás do Santo Padre e tinha a mesma vista que ele sobre a Praça. Era um dia frio, luminoso e bonito. A audiência começou normal o suficiente dadas as circunstâncias. O Santo Padre fez-nos o seu discurso de despedida e todos ouvimos.
De repente, apercebi-me que, em vez dos movimentos normais da multidão – com canções a distrair, bandeiras a mexer e uma onda de festa – vi cada uma das caras até à outra ponta da Praça de S. Pedro virar-se atentamente para o Papa Bento. Aqui estava um enorme grupo de pessoas – pelo menos 100,000 – a ouvir cada uma das coisas que o Papa dizia com a maior das atenções.
Ouviam com cuidado, aplaudiam cada conjunto de frases e tentavam (com sucesso, penso) comunicar algo que um Papa nunca viu na sua vida: uma mensagem de enorme gratidão e de despedida afectuosa. Isto é uma coisa que os pontífices só recebem quando é tarde demais, quando já se foram embora, quando estão a ser elogiados.
Dado o fantástico e abnegado serviço que este cavalheiro da Baviera deu à Igreja, sempre me pareceu que ele mereceu ver e sentir um pouco a enorme gratidão de imensas pessoas pelo mundo fora por ter tomado a grande cruz de liderança da Igreja, por ter perseverado sob o calor e o suor de cada dia e por ter escolhido sabiamente o momento certo para pousar esse terrível fardo.
No dia 28 de Fevereiro juntei-me a muitos colegas da Secretaria de Estado no Pátio de S. Dâmaso a cerca das 4:30 da tarde. O Santo Padre veio ao pátio, acenou-nos em despedida e deu-nos a sua benção. Nós aplaudimo-lo de uma forma moderada mas solidária, enquanto ele era levado do pátio e foi com uma grande mistura de sentimentos que voltei a subir as escadas para o meu escritório para ver na televisão o resto da sua viagem para o exílio. Apesar de ser um momento triste, Roma raramente estava tão bonita no crespúsculo cinzento e azul do inverno enquanto o helicóptero que levava o Santo Padre para Castel Gandolfo era filmado por outro helicóptero.
O homem que depois apareceu brevemente na varanda em Castel Gandolfo parecia tão abatido que nenhum dos meus colegas esperava vê-lo durar muitas mais semanas.
Felizmente, no entanto, eu pude ver Bento XVI bem outra vez, mais uma vez, antes de deixar Roma. Cerca de seis meses depois da sua resignação, em Agosto desse ano, ele pediu para me ver no seu pequeno mosteiro no Vaticano, que é a sua nova residência.
Usava uma batina branca folgada sem a faixa e caminhava com a sua bengala normal, mas estava bem e relaxado e parecia feliz, rodeado dos seus velhos amigos: a sua considerável biblioteca de livros. Também tinha a sua cor e sorriso de volta.
Falámos sobre Edimburgo e sobre alguns dos tempos em que tínhamos trabalhado juntos, especialmente a sua visita de estado à Bretanha e os seus vários momentos, incluindo o seu encontro com a Rainha, que tinha dado um início tão bem sucedido à visita. Foi bom saber que houve uma conclusão feliz para o Calvário que eu tinha visto o Papa Bento subir no dia em que anunciou a sua decisão para deixar o papado.
Às vezes pergunto-me a mim mesmo, daqui a 100 anos, quantas pessoas vão estar a ler o corpus literário deixado por Joseph Ratzinger? Mas penso que já não há pequena dúvida de que este modo corajoso e sábio de partir vai dar a Bento XVI um lugar especial na história dos Papas.
Mons. Leo Cushley, Arcebispo de St. Andrews e Edimburgo, in The Catholic Herald (11/II/2015)