Um opinião sobre os livros apócrifos

Neste artigo escrito por Frei Jacir de Freitas Faria, da Ordem dos Franciscanos, é abordado uma visão sobre os livros apócrifos. A palavra “apócrifa” significa literalmente, “ocultos”. Assim são chamados os livros que alguns tentaram introduzir no Cânon da Sagrada Escritura, na Bíblia, e que não foram admitidos pela Igreja sendo considerados falsos e sem inspiração Divina como os demais livros.    

Leia o texto:

A propósito do que escrevi no meu livro: Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos – Poder e heresias! (Vozes), na complexidade que o tema nos impõe, gostaria de salientar alguns pontos da trajetória histórica do cristianismo em seus sete primeiros séculos, a partir dos oitenta e oito apócrifos do Segundo Testamento, classificados por nós de aberrantes, complementares ou alternativos. Todos eles são formas de cristianismos e refletem a luta árdua que tiveram com aquele que se consolidou como hegemônico. Alguns deles exageraram na criatividade de textos ou práticas como liturgia sexual; outros simplesmente complementaram – ainda que de forma conservadora – a versão oficial; outros, por serem tão alternativos, foram relegados ao ostracismo.

O cristianismo conviveu até o século terceiro com diversas teorias e teologias. O cristianismo apócrifo gnóstico, principal opositor daquele se tornou hegemônico, era também multiforme. E, por isso mesmo, se enfraqueceu e foi vencido. No cristianismo hegemônico, a trajetória foi diversa. Ele conseguiu agregar vários modos de pensar teológico, até mesmo apócrifo, num único ramo que se tornou oficial e hegemônico, no quarto século. Os outros foram subjugados a ele, expulsos e cunhados de heréticos, pois pensavam diferente do que fora estabelecido como verdadeiro. A história foi reescrita pelo grupo vitorioso, de modo que parecesse que assim já era desde os tempos apostólicos. O cristianismo vencedor das disputas teológicas foi aquele que firmou raízes no império romano e chegou até nós. Por isso, ele é também chamado de romano e católico, por ter sido anunciado a todo o mundo, com base nos ensinamentos dos apóstolos, sobretudo Pedro e Paulo. Nasce, assim, a cristandade, fundamentada no cristianismo apostólico.

 
Para se firmar como cristianismo hegemônico, ele estabeleceu, ao longo de séculos, dez ações, tais como:

  

  1. provou ao império romano a sua antiguidade a partir do judaísmo, sendo a realização das promessas do Primeiro Testamento;
  2. rompeu com o judaísmo como religião;
  3. criou uma igreja e um bispo homem, eliminando o poder de direção institucional das mulheres;
  4. colocou um bispo romano para todas as igrejas;
  5. criou comunhão universal na fé apostólica com todas as igrejas, tornando-se católico;
  6. estabeleceu um credo de fé apostólico;
  7. eliminou os vários outros modos de conceber o cristianismo, sobretudo aqueles cognominados de apócrifos aberrantes, complementares ou alternativos;
  8. utilizou tradições apócrifas complementares em seus dogmas de fé;
  9. determinou a lista dos livros inspirados;
  10. fundamentou, nos canônicos e na tradição apostólica, a fé em Jesus, humano, divino e trinitário.

Os cristianismos alternativos resistiram ao longo dos séculos. Rondam o nosso imaginário teologias de Tertuliano e Orígenes, dos ebionitas e marcionitas, dos montanistas e arianos. Muitas de nossas práticas e profissões de fé cristã católicas, ortodoxas, gregas ou evangélicas têm também seus fundamentos nas origens apócrifas do cristianismo. Mesmo que queiramos negar os cristianismos antigos, isso não é possível. Eles estão aí e permanecerão sempre no imaginário popular, na fé libertadora e conservadora, no ecumenismo e na ortodoxia. O que vale é uma leitura ecumênica, dialogal com eles.

 
Somos eternos devedores de uma fé sólida e eficaz aos nossos predecessores que construíram o cristianismo que hoje vivenciamos, mas é salutar e libertador conhecer outras formas de cristianismos, bem como entender a nossa fé a partir desses cristianismos antigos e perdidos. A nossa fé se torna mais adulta, libertadora e comprometida com os valores de fé, dos quais não podemos abrir mão. A questão não é fazer dos apócrifos uma literatura inspirada. Basta compreender que eles foram vozes alternativas abafadas e perseguidas pelo cristianismo que se tornou hegemônico, num misto de poder e heresias.

 

A descoberta dos apócrifos, sobretudo os gnósticos, é o grande achado da atualidade, que nos revela o outro lado da moeda na luta desenfreada pelo poder, nos primórdios do cristianismo. Poder? Que poder? Poder de direcionar a fé, de organizar uma instituição hierárquica capaz de salvaguardar a essência da fé em Jesus Cristo, em um só credo e em uma igreja universal. E foi por causa dessa organização institucional do cristianismo que ele sobreviveu e marcou a humanidade em antes e depois de Cristo. Pena que, para isso, os seres humanos daquele tempo tiveram que ser divididos em hereges e oficiais. Ninguém é tão oficial que não tenha nada de herege e ninguém é tão herege que não tenha nada de oficial.

(*) Frei Jacir de Freitas Faria, OFM é escritor, professor e exegeta

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Frei Jacir de Freitas Faria

Este texto foi retirado do site http://www.franciscanos.org.br

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